Sozinha com Bluey e Bingo, a mãe encontra-se visivelmente cansada e em esforço para dar resposta às suas brincadeiras e solicitações. Quando o pai chega, aparentemente do barbeiro, Chilli diz-lhe que precisa de 20 minutos “sem que ninguém se aproxime de si”. O pai compreende e chama as filhas para brincar, mas Bluey fica preocupada.
Bluey: A mãe está bem?
Pai: Está.
Bluey: Fizemos alguma coisa que a aborreceu?
Pai: Não, não fizeram.
Bluey: Ela gostava que nós não existíssemos, pai?
Pai: Não Bluey, claro que não, ela só precisa de 20 minutos.
Bluey: Eu vou só ver se ela está bem.
Pai: Não, eh… fica aqui. Podes ver-me dançar can-can. (Começa a dançar).
Bluey não fica convencida.
Bluey: Eu vou ver se a mãe está bem.
Pai: Não, não, não, espera! Não há um jogo qualquer que eu não suporto e tu queres sempre jogar?
Bluey: Há.
Pai: Boa! Bem, então vamos jogar a esse.
Começam a brincar ao “cão ovelha”, brincadeira na qual o pai é uma ovelha desobediente de quem as filhas tomam conta. Contudo, Bluey não consegue parar de a interromper a pretexto de ir ter com a mãe. Não obstante todas as tentativas do pai para a distrair e impedir, a filha acaba por conseguir ir ter com Chilli ao quarto.
Bluey: Mãe, estás aí?
Mãe: Sim, Bluey, eu estou aqui.
Bluey: Desculpa se fiz alguma coisa que te aborreceu.
A mãe abre a porta.
Mãe: Tu não fizeste nada para me aborrecer, querida.
Bluey: Então porque é que não queres estar connosco mãe?
Mãe: Eu quero estar convosco, mas tomar conta de crianças pode ser difícil. Às vezes as mães precisam de 20 minutos.
Bluey: Não estou a perceber…
Mãe: Um dia vais perceber filhota.
Ao ouvirem a vizinha, Wendy, a gritar com o “cão-ovelha”, Bluey vai a correr ter com eles. Wendy, ao perceber a situação, convida Bluey e Bingo a ir a sua casa brincar com Ju, sua filha. Elas ficam entusiasmadas com a ideia e Bluey, contente, diz ao pai: “Não te preocupes ovelhinha, nós gostamos de ti, a sério. É que… tomar conta de ti é complicado”. Aproveitando a deixa, Wendy reafirma: “só precisam de 20 minutos, mais nada”.
É muito comum os pais viverem momentos de um extremo cansaço — sentirem-se em esforço, sem paciência, fartos, esgotados — e terem necessidade de algum espaço e tempo para si, longe dos seus filhos. São alturas em que, por mais que estejam fisicamente presentes, estão (e sentem-se) indisponíveis, e em que essa indisponibilidade é, inevitavelmente, (res)sentida por todos. Por isso mesmo, e não só, é importante que, tal como sucede com Chilli, os últimos possam expressar a sua necessidade e encontrar forma de, quando possível, ter os “20 minutos”, de que tanto precisam, para si.
O problema é a culpabilidade que muitos sentem quando contactam com este tipo de sentimentos em relação aos filhos. Será que isto me torna má/mau mãe/pai? Será que não devia ter sempre vontade de estar com os meus filhos? Será que se irão sentir abandonados por não querer estar com eles? Não estarei a falhar como mãe/pai por estar a sentir “assim”?
A isto acrescem-se as inseguranças da própria criança, tão bem representadas por Bluey no episódio e que são, na verdade, características do egocentrismo infantil: Será que a/o mãe/pai deixou de gostar de mim? Será que fiz alguma coisa de errado? Será que não queria(m) que eu existisse? Por outro lado, nem todas as crianças acedem e expressam as suas angústias de forma tão clara, reagindo, muitas vezes, por meio de comportamentos mais disruptivos que levam os pais a sentir ainda mais dificuldades em lidar e gerir os seus próprios sentimentos de indisponibilidade vs. culpa, a par das reivindicações e necessidades manifestadas pelos filhos.
Esta é uma das razões pelas quais é tão importante as crianças perceberem que os adultos também têm “dias maus” – dias difíceis, dias de maior cansaço e/ou indisponibilidade, dias em que se sentem mais tristes ou zangados –, pois, também estes, são humanos. E, por força deste egocentrismo, tão natural da infância, que coloca a criança sistematicamente num lugar de uma enorme culpa e receio de perder o amor das suas figuras cuidadoras, torna-se igualmente importante que, nesses dias/fases/momentos, os pais possam assegurar os filhos, as vezes que forem precisas – e, normalmente, são muitas! –, que os amam e que a sua indisponibilidade nada tem a ver com eles, pois “os crescidos também têm dias em que estão mais cansados, rabugentos, zangados e/ou tristes”.
Por outro lado, também é esta indisponibilidade que, quando assumida e respeitada pelos próprios, possibilita a existência de uma verdadeira disponibilidade. Aquela em que os pais estão com os filhos com, e por, prazer, e não somente por obrigação. Aquela em que estão de corpo e alma, e não apenas de modo funcional e como corpo presente. São estes momentos, em que a ausência é possível, que o desejo pode ter lugar – e, assim, contribuir para uma relação com vontade e de qualidade.
No entanto, ao contrário do que se possa pensar, e tal como o episódio sugere, isto não é válido só para os pais: também as crianças precisam, e beneficiam, destes “20 minutos sem os pais”. Apesar das inseguranças expressas por Bluey, o facto da mãe se “autorizar” a ausentar-se e a ter o seu tempo, sozinha, no seu quarto, permite que a filha, depois de assegurada de que o seu amor se mantém, também encontre uma forma de usufruir do seu tempo, individual e sem os pais, e fá-lo de maneira particularmente simbólica: é fora de casa que Bluey decide disfrutar, feliz, dos seus “20 minutos sem o pai”. Tal como a mãe, ela própria se pode afastar de ambos e ir divertir-se, pois está segura de que a sua ligação se mantém — “não te preocupes, ovelhinha, nós gostamos de ti”.
No mesmo sentido, a solução apresentada por Wendy faz lembrar o sábio provérbio africano, que diz que “é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança”. A visível dificuldade do pai em dar resposta à necessidade de Chilli vs. as inseguranças da filha não se trata, necessariamente, de uma questão de competência/incompetência da parte deste, mas sim de algo bem mais pertinente, na medida em que Bluey só é bem sucedida a separar-se da mãe quando recorre a alguém “de fora”. Na verdade, nenhuma família é “suficiente” para, por si só, responder a todas as necessidades de uma criança. Há recursos que a última só pode construir fora de casa e do ambiente familiar – no contacto com outros contextos, pessoas, meios, e na diversidade de experiências e vivências que estes oferecem –, pelo que é essencial que a família não fique centrada em si própria e permita à criança olhar para outras famílias e pessoas. Contudo, a última só consegue virar-se para fora se os pais não estiverem sempre presentes, nem procurarem dar sempre resposta “a tudo”.
Sem falta, sem ausência, sem indisponibilidade, não há relação genuína, nem desejo — há cansaço, obrigação, esgotamento. Sob este ponto de vista, pode pensar-se que, pais sempre disponíveis são, na verdade, pais indisponíveis. Todos precisam(os), por vezes, de “20 minutos de quarto” — e, por quarto, entenda-se privacidade, intimidade, espaço próprio. Por isso mesmo, também as crianças merecem ter os seus “20 minutos sem os pais”, indispensáveis para que possam fazer o seu processo de separação/individuação e, assim, fazer o seu caminho em direção à individualização e à autonomia — quer isto dizer, no sentido de crescer e ser livres.
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TEMPORADA 3, EPISÓDIO 11
TÍTULO: Cão Ovelha
LINK: https://youtu.be/LabBwLEyhx0
SINOPSE
Bluey é uma série de televisão infantil, de origem australiana, transmitida internacionalmente pela Disney Junior e Disney +. O programa gira em torno de Bluey, uma cadela antropomórfica de 6 anos, e a sua família - pais (Bandit e Chilli) e irmã mais nova (Bingo, de 4 anos). Através do reino infantil da imaginação, da brincadeira e do faz-de-conta, que ocupa um lugar central na vida quotidiana das duas irmãs, todos os episódios trazem à luz importantes temáticas da psicologia infantil e da parentalidade, apresentando sempre, de forma criativa e divertida, uma resposta construtiva aos conflitos emergentes.