– Pais & Filhos a partir da Bluey – 3. “O meu filho é o mais especial do mundo”

Filipa Clemente

Stripe, pai de Muffin, prima pequena da Bluey e da Bingo, passa um sinal amarelo sem abrandar, deixando Muffin surpresa com a sua transgressão.

Muffin: Pai, passaste um sinal amarelo!

Sem saber como se justificar perante a filha, o pai explica que “foi um caso especial”. Muffin reflecte.

Muffin: Tu és especial, pai?

Pai: Um bocadinho, sim.

Muffin: E eu, também sou especial?

Pai: Muffin, tu és a criança mais especial do mundo!

Muffin reage com surpresa e entende que, tal como o seu pai, também ela é especial. Contudo, isso traz consigo uma difícil questão: Quererá isso dizer que, então, tal como o pai, também ela pode transgredir? Será que, “ser a criança mais especial do mundo”, faz com que Muffin não tenha de ter as mesmas regras que as outras crianças?

Ao chegarem a casa da Bluey, Muffin começa por dizer à tia que “não tem de limpar os pés no tapete”. Vai ter com Bluey e Bingo, que estão a brincar às bibliotecas e lhe explicam as regras da brincadeira, contudo, ao invés de integrar a brincadeira das primas, Muffin começa a infringir todas as regras (anda de mota na biblioteca, faz barulho, decide que quer o livro da Bingo, etc.). A pedido da mãe e do tio, as primas deixam-na “brincar à sua maneira”, mas, a certa altura, já impossibilitadas de continuar a brincadeira, desistem.

O pai de Muffin, apercebendo-se das consequências do que transmitiu à filha, vai falar com a última.

Pai: Muffin, lembras-te quando eu disse que és a criança mais especial do mundo filha?

Muffin: Sim.

Pai: Pois… não és. Quer dizer, tu és para mim e para a mamã, nós amamos-te mais do que qualquer coisa, mas provavelmente não és especial para as outras pessoas.

Muffin: Está bem.

Pai: Por isso, tens de seguir as mesmas regras que as outras pessoas, está bem?

Muffin: Está bem, pai!

Surpreendentemente contente, Muffin vai a correr ter com as primas e diz que já pode brincar com elas, pois “afinal não é especial”. Felizes, as primas vão brincar às bibliotecas, agora todas sob as mesmas regras.

De volta a casa, também o pai, ao perceber a sua importância enquanto modelo e exemplo para a filha, decide abrandar no sinal amarelo. Muffin felicita-o.

Tal como o pai de Muffin, a maioria dos pais sentem os seus filhos como especiais, desejando e procurando, das mais variadas formas, que estes saibam o quanto são amados e especiais para si.

É, de facto, essencial, que os filhos se possam sentir únicos e especiais aos olhos dos pais, sobretudo na primeira infância. É importante não só para a segurança, confiança e bem estar emocional da criança, como para o desenvolvimento do seu amor próprio.

No entanto, muitos pais tendem a procurar minimizar e compensar os sentimentos de frustração dos seus filhos e a querer protegê-los, o mais possível, de situações que os façam sentir-se tristes, impotentes e/ou “diminuídos” em relação a si ou aos demais. Se esta proteção pode ser, em certa medida, positiva, pois permite que a criança encontre nestes uma fonte de afecto e segurança à qual pode recorrer incondicionalmente; quando na ausência de certos limites, também pode apresentar-se como um obstáculo ao seu crescimento e possibilidade de se adaptar à realidade, na medida em que a tornam menos capaz de lidar e responder de forma adequada às adversidades, contrariedades e frustrações com que, naturalmente, se depara (e irá deparar) noutros contextos (escola, amigos, etc.).

Neste sentido, o episódio apresentado ilustra bem o quão a omnipotência infantil “grita” por determinados limites: Muffin sente-se tão empoderada com a ideia de “ser especial” que começa a testar, activamente, os limites do seu poder, opondo-se às regras da brincadeira e impossibilitando a própria brincadeira, tanto a ela, como às primas.

Quando, por fim, o pai a confronta com a realidade e limites deste suposto poder, o que sobressai em Muffin não é a frustração, mas o alívio: se ela é como os outros, e se tem de reger pelas mesmas regras, então também pode, finalmente, participar da brincadeira das primas.     

Proteger os filhos é, também, prepará-los para a realidade, sendo que, para que este olhar especial dos pais jogue verdadeiramente a favor da criança, no decurso do seu crescimento e desenvolvimento, não deve alimentar a ilusão de que a realidade pode ser feita “à sua medida”, uma vez que, mais cedo, ou mais tarde, o “choque” com a última vai ter lugar e será tanto maior, quanto mais espaço tiver a sua ilusão infantil.

Tal como sugere a brincadeira da biblioteca, para que a criança possa ser bem sucedida nas relações que estabelece com os outros, bem como na sua integração escolar – que aparece, normalmente, como a primeira ponte entre a proteção familiar e a realidade mais ampla –, e viver os benefícios resultantes destes contextos, esta precisa de ter, dentro de si, não só o amor que a sustenta, mas também a possibilidade de se adaptar às regras, limites e frustrações que estes também implicam.

O meu filho é o mais especial do mundo? Também. Pois todos os filhos são os mais especiais do mundo, para os seus pais. E só assim é que, ser especial, pode (vir a) ser bom.

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TEMPORADA 2, EPISÓDIO 30

TÍTULO: Biblioteca

LINK:https://youtube.com/watch?v=bLRfuwN0Hk0&feature=share

SINOPSE

Bluey é uma série de televisão infantil, de origem australiana, transmitida internacionalmente pela Disney Junior e Disney +. O programa gira em torno de Bluey, uma cadela antropomórfica de 6 anos, e a sua família - pais (Bandit e Chilli) e irmã mais nova (Bingo, de 4 anos). Através do reino infantil da imaginação, da brincadeira e do faz-de-conta, que ocupa um lugar central na vida quotidiana das duas irmãs, todos os episódios trazem à luz importantes temáticas da psicologia infantil e da parentalidade, apresentando sempre, de forma criativa e divertida, uma resposta construtiva aos conflitos emergentes.