Os monstros existem? (Claro que sim!)
Recentemente, li um post, algures numa rede social, de um/a terapeuta do sono (que desconheço) que tinha recebido uns pais que, para ajudar o filho pequeno a lidar com o medo dos monstros, tinham, de uma forma que considerei muito intuitiva e sensível, inventado um “spray anti-monstros”.
Foi com alguma surpresa que li que o/a terapeuta havia sugerido que a estratégia adoptada pelos pais, não só é errada, como é contraproducente, pois “ao estarem a criar uma forma de combater os monstros estão a confirmar que eles existem”. É caso para dizer que os pais, com mais frequência do que imaginam, muitas das vezes sabem o que fazem, mesmo sem o saber. Já os terapeutas, infelizmente, nem sempre.
É claro que os monstros existem - como, aliás, sempre existiram. Desde sempre que os encontramos nas histórias, nos desenhos, em várias formas de arte, porque existem no nosso imaginário e são parte integrante dele. Quem nunca temeu um monstro dentro dum armário? Um alienígena atrás das cortinas? Um bicho estranho a vir pelos buracos do lado da cama?
João dos Santos (1), um reconhecido psiquiatra e psicanalista, dizia que as crianças têm uma possibilidade que os adultos não têm, que é a de poder resolver os seus conflitos internos através da fantasia - das histórias, do brincar, da imaginação. Isto acontece pois, até aos 6/7 anos, o mundo interno e o mundo exterior ainda não estão devidamente separados no psiquismo infantil, o que leva a que o espaço da fantasia, esse espaço entre o imaginário e a realidade, se torne uma forma privilegiada de comunicação entre estes dois mundos. E é neste espaço intermediário, tão rico e versátil, que as crianças encontram a possibilidade, não só de comunicar e expressar, como de resolver e transformar, aquilo que vai dentro de si e, naturalmente, aquilo que mais as assusta. E nós - adultos, pais, cuidadores e/ou terapeutas -, temos o dever de facilitar esse espaço e, quando possível, permitir que se possa constituir como um recurso para a própria criança - de resto, tal como estes pais, espontaneamente, fizeram, quando inventaram um poderoso spray anti-monstros.
Dizer a uma criança que “os monstros não existem”, é o mesmo que dizer que não há lugar para os seus medos, ou para as suas partes más, ou para as partes más do(s) outro(s) ou do mundo em geral. É, na verdade, deixar uma criança com uma “batata quente” nas mãos - se os monstros “não existem”, então, parte dela também não existe (ou não pode existir). Os monstros, a par dos fantasmas, dos vampiros, das bruxas, dos lobos, e afins, são apenas a expressão de algo que a criança teme dentro de si e que (ainda) não consegue nomear de uma forma racional e adulta. Assim, e tendo em conta esta potencialidade infantil que João dos Santos tão sabiamente sublinhou, a melhor maneira de ajudar uma criança a lidar com estes monstros é, sem dúvida, procurando com ela uma estratégia para os afastar, no âmbito da sua fantasia: seja um spray anti-monstros, seja uma vassoura que o “varra” dali para fora, seja um “monstro bom” que é mais forte que o “monstro mau” e é capaz de o combater, seja o que for que funcione, para aquela criança em particular, naquele contexto específico.
Ao contrário do que alguns adultos possam temer, isto não vai levar a que a criança venha a acreditar que os monstros existem ou a procurar soluções mágicas para os problemas da vida adulta. Pois, quando não estamos na presença de patologias mais graves, as realidades interna e externa vão sendo integradas à medida que a criança se desenvolve e amadurece - e, a certa altura, os monstros, tal como sucede com o pai natal, o coelho da Páscoa ou a fada dos dentes, passarão a fazer apenas parte do mundo fantástico a que pertencem, enquanto os medos passarão a ser outros, mais ajustados à realidade e à linguagem adulta (falhar, errar, não ser gostado, …).
Na verdade, este tipo de estratégias irão permitir que a criança crie e reforce dentro de si a capacidade de fazer face e lidar com os seus próprios medos (e, claro, monstros!). E esta, sim, trata-se de uma possibilidade que fica para a vida a toda.
Santos, J. (2000). Se não sabe porque é que pergunta? Conversas com João Sousa Monteiro. Lisboa: Assírio & Alvim.