O efeito de dessensibilização

Ana Almeida

Tudo o que mais queremos e almejamos nas nossas relações íntimas amorosas é ser amados. É poder sentir o quão importantes e interessantes somos para a outra parte e a sua vontade de estar e conviver connosco. E, a partir daí, é podermos construir uma verdadeira, sólida e profunda intimidade e cumplicidade a dois. Mas... nem sempre conseguimos isto. Por vezes não o conseguimos por mais relações que tenhamos. E assim, a vida vai passando por nós.

As relações amorosas caracterizam-se por uma interdependência normativa entre ambos os companheiros. São duas pessoas que se interessam uma pela outra, que investem uma na outra, e cuja economia emocional de cada pessoa passa a depender em grande parte do retorno afetivo do outro amado. Nesta medida, permanecer em relações onde não há esse retorno ou ele é insuficiente, pode resultar num desequilíbrio emocional relacionado com o abaixamento contínuo da autoestima e com a depressão. Quando existem problemas emocionais de fundo (como alguma forma de depressão), com repercussão na autoestima, então as relações amorosas tendem a ser bastante procuradas no intuito de servirem como que de plataformas de salvação. Tornam-se vitais e a sua perda é de tal forma perigosa que mais vale permanecer numa má relação que sem nenhuma relação. Claro que, permanecer numa relação sem o retorno afetivo necessário é também o caminho para o agravamento da dor emocional e da depressão, e logo, da dependência. Fica-se num beco sem saída.

A dependência original remete para o período da infância. Podemos dizer que toda a infância é uma longa fase de dependência que, quando tudo correr relativamente bem, termina no acesso à autonomia ou à dependência madura nas relações com as outras pessoas. De facto, a dependência, ou necessidade de sermos cuidados, está imbuída no nosso ADN. Logo desde bebés essas necessidades requerem respostas concretas pelas principais figuras de cuidados e vinculação da infância. As consequências de tal não acontecer são, particularmente no início de vida, muito graves para o desenvolvimento psicológico.

É imprescindível, por exemplo, que no início de vida haja a presença de um cuidador tranquilo, disponível, consistente e sintónico com as necessidades do bebé de dormir, de ser alimentado, de que lhe mudem a fralda quando está molhada, quando tem frio ou quando está a ser hiperestimulado (muitos sons, muitas solicitações ou muitas pessoas presentes, que acabam por saturar o aparelho psíquico ainda demasiado imaturo para conseguir filtrar sozinho tantos estímulos). Do encontro entre estas necessidades e estes cuidados nasce o sentimento de existência e o prazer de existir.

As crianças pequenas sozinhas não têm a capacidade de discriminar emoções nem de entendê-las e dar-lhes os devidos significados para que a partir daí possam organizar o pensamento. Ou seja, dependem dos cuidadores para que estes as ajudem a digerir (processar/elaborar) e integrar (interiorizar) as emoções e as experiências de vida ligadas a estas. Um pai ou uma mãe atentos a um filho pequeno que parece mais abatido ou demasiado irrequieto irão procurar sentar-se junto dele e, através de uma atitude tranquila e paciente, sintónica, empática e às vezes um pouco intuitiva, irão procurar compreender o que se passa. Neste diálogo a criança, que não tem nome para o que sente, nem sabe porque o sente, irá dispor do próprio aparelho de pensar as emoções dos adultos que cuidam dela. Assim, os pais vão procurando perceber, dar nome e pensar sobre as emoções/situações que a criança está a tentar perceber e organizar dentro de si. Subitamente percebe-se que a criança não está mais abatida! As emoções difíceis foram nomeadas, pensadas e transformadas pela disponibilidade tranquila e paciente, e pela compreensão empática dos pais ou outros cuidadores.

Gradualmente uma criança vai ganhando confiança de que existem outras pessoas à volta dela junto das quais ela consegue alívio das suas angústias. Para além disso ela consegue também, através da relação e do diálogo com essas figuras, organizar o pensamento e obter novas perspetivas que lhe vão dar respostas e soluções para problemas com os quais não consegue lidar sozinha. É também esta a relação que o psicoterapeuta psicanalítico oferece e das funções mais importantes que desempenha ao longo de uma psicoterapia.

A capacidade de gerir e digerir as próprias emoções mais difíceis e conteúdos internos vai, por consequência, aumentando, e com isso a capacidade de fazer face a situações difíceis sem uma necessidade tão grande de depender de ajuda exterior. Ou seja, a dependência começa a enfraquecer e a autonomia a formar a sua sólida raiz com base neste incremento de robustez da personalidade e das partes saudáveis da mesma (que conferem a capacidade de lidar com emoções mais difíceis); Na interiorização da função pensante e transformadora das emoções daqueles que apoiam a criança desta forma sempre que ela precisa; E na expansão da capacidade de pensar. Sendo também estes os objetivos e ganhos da psicoterapia.

Simultaneamente a confiança para viver, explorar e fazer novas experiências é reforçada pela possibilidade sempre presente do regresso para junto daqueles que oferecem o seu apoio (disponibilidade e compreensão empática) no sentido do alívio das angústias e da organização da experiência interna da criança quando ela mais precise. Reforça-se o prazer de funcionar autonomamente, com base na interiorização da disponibilidade das figuras reais de apoio. Tal como é o efeito da disponibilidade do psicoterapeuta e do espaço da psicoterapia, sempre ao dispor para regresso ao mesmo àquela(s) hora(s) específica(s) da semana.

Finalmente surge a capacidade da criança, e mais tarde do adolescente e do adulto, de construir outras relações à sua volta, com base nestas relações sanígenas capazes de apoiar e de oferecer lucidez, bem como de ajudar a organizar o pensamento sempre que necessário. Assim como também a psicoterapia procura ajudar a trabalhar as dificuldades pessoais à possibilidade de serem procuradas, criadas e geridas relações sanígenas ao longo da vida.

Assim, a dependência infantil não existe mais. Estão organizadas internamente as bases da autonomia ou da dependência madura, que nas relações amorosas permitem a liberdade para sair ou abandonar relações menos gratificantes. Isto porque no passado lá tiveram relações melhores e mais gratificantes, porque esse é o mundo interno relacional com o qual a pessoa está sintonizada dentro dela, porque existem outras relações no presente (pais, amigos, ou outros) que oferecem maior bem-estar e satisfação que a própria relação amorosa (que deve ser das mais gratificantes de todas). Por tudo isto, a esperança ou sentimento de possibilidade viável e real de serem encontradas e construídas outras relações mais em sintonia com as necessidades e desejos pessoais é também grande. A relação terapêutica é também uma nova relação que se oferece enquanto nova experiência, reparadora, sanígena e unidade de referência para a procura, refinamento e construção de outras relações ao longo da vida.

 

Aquando e para além da dependência

Contudo, muitas vezes não basta o percurso que conduz à redução da dependência. Por entre os meandros desse percurso há também que trabalhar traumas e fantasmas que habitam dentro de nós, involuntariamente estimulados e acordados quanto nos vinculamos (ou intencionamos vincular-nos) mais íntima e intensamente a alguém. Falamos das influências oriundas das nossas primeiras e mais marcantes relações com as nossas figuras principais de vinculação durante a infância e adolescência. Como estes são os vínculos mais fortes que construímos logo no início de vida, assim que nos vinculamos ou tencionamos vincular-nos mais intensamente com alguém, naturalmente toda a nossa história emocional vivida nesse registo de vinculação vem ao de cima. Quanto mais negativa for essa história, mais conflitual tendem a ser as relações íntimas na vida adulta - e mais inescapáveis tendem a ser.

São frequentes as exigências de comportamentos e atitudes nos companheiros do presente, que acabaram por faltar (ou foram insuficientes) nos cuidadores do passado. Como que num intuito (por vezes mais inconsciente) de reparação do passado através do presente, que mais não serve enquanto defesa à religação emocional com o passado. Assim, impossibilita o processamento emocional e o luto de um passado que ficou aquém do desejo, do amor e dos cuidados que nessa altura, mas não se tiveram (ou o que se tiveram insuficientemente) nessa altura. O que ainda pode ser realisticamente vivido no presente torna-se então relativamente inacessível. Fica-se fechado ao amor que é realisticamente possível ser vivido - o amor maduro, paciente, compreensivo e não exigente das relações adultas - com quem realisticamente está ao nosso lado - e não com os fantasmas do passado que distorcem a realidade da outra pessoa, que lhe incutem características irrealistas e desadequadas e que resultam em expetativas também elas pouco adequadas às relações íntimas maduras, ainda que adequadas a outras épocas de vida e em outras relações. No presente há apenas uma repetição interminável de mais do mesmo, ainda que sempre no intuito de se conseguirem "aquelas" respostas, "aquele" amor.

Também no psicoterapeuta são frequentemente colocadas estas exigências concretas, inicialmente, ou muitas vezes durante e após um período de queixume sobre as mais diversas atitudes, comportamentos e traços de personalidade do companheiro ou companheiros. Queixas de como estes não conseguem/podem ser como a figura (idealizada) que ainda se precisa e ainda se procura. Cabe ao psicoterapeuta a responsabilidade de criar uma relação de confiança que por um lado seja diferente daquelas que não conseguem dar as respostas e cuidados adequados. Mas também uma relação em que a dor e carências do passado possam finalmente ter expressão, e em que presente e passado possam ir sendo cada vez mais separáveis, até que o passado cicatrize e passe a ser verdadeiramente passado. Assim, abre-se a possibilidade de um presente que pode ser conhecido e vivido plenamente tal como é, e de nele poderem ser encontradas e criadas novas fontes de prazer e de alegria que gratificam e preenchem plenamente. Enquanto seres humanos a verdade infeliz é que nós não precisamos relembrar o passado, porque todos nós vivemos o passado no nosso presente de uma ou de outra forma. Algumas pessoas inclusive não têm possibilidade ao longo de toda a vida de conseguirem viver verdadeira e plenamente o presente, sem as faltas, exigências ou deturpações do passado.

Para finalizar, fica a nota de que a dependência e o que fica dentro de nós enquanto precipitado de outros tempos de vida têm uma ligação íntima com a nossa autoestima (e com a nossa identidade). Este é mais um dos eixos extensivamente trabalhado durante uma psicoterapia aquando do trabalho sobre a capacidade de cuidarmos de nós mesmos, a autonomização emocional (e não só) e a identidade, entre outras áreas da personalidade.